Por Kalill DibRua vazia, chuva caindo sem parar e um vento gelado, faziam da noite de domingo o horário propício para uma sopa quente de feijão e uma cama aconchegante. Mas para Reis o dia não era nem de domingo. O vento frio que cortava a pele e a chuva que não cessava eram costumes do seu corpo. Indivíduo forte e simpático, morador de rua, passava a noite em qualquer banco de praça, a não ser em tempos de chuva que se deitava no canto da prefeitura.
Reis conheceu os becos nem sabia como. Era negro, tinha barba grande, cabelos cumpridos e grisalhos, usava um conjunto de moletom de cor bege e um ex chinelo branco. Carregava nas costas um saco de lixo com seus pertences, talvez uma troca de roupa e alguns pães, e tinha um sorriso tão vasto quanto o seu sofrimento.
Nasceu na rua. Ainda criança foi condenado como infrator ao roubar dois cachos de uva de uma quitanda para matar a fome, por isso ficou retido em uma casa para menores até completar a maioridade. Quando, por preconceito, não conseguiu emprego voltou a seu lugar de origem. Não tinha amigos nem família e vivia à custa da sociedade. Com uma esmola aqui, outra ali, conseguia se sustentar e foi se acostumando à vida.
A vida? Enquanto ligou para ela Reis não sorriu. Já se sentiu tão humilhado e injustiçado que pensou em ir embora desse mundo por conta própria. Porém, conversando com seus pensamentos, decidiu viver, do seu jeito, até alguém resolver te levar.
Em frente a prefeitura, onde ganhava a maior quantidade de mendiga, ele viu muitas injustiças e fez parte delas por tantas vezes. Era de lá que saiam carros de luxo, pessoas de terno, damas com vestimentas requintadas. E era lá que Reis enxergava a luz no fim do túnel: uma casa, um banho e talvez um almoço.
Leigo no mundo da política o mendigo apenas pensava em dizer coisas sem sentido, a pergunta era: por que tantos têm tudo, enquanto outros nada? E não encontrava as respostas nem nos seus pensamentos idealistas.
Ele ainda mantinha a esperança de que algum homem de terno viria oferecer um chuveiro e alguma dignidade aos olhos da sociedade. Mas tudo não passava de esperança, isso era certo quando os políticos o olhavam com desprezo.
Numa manhã de sábado, se ouviu camburões, alarmes e gritaria. Reis acabava de levantar do canto seco onde passou a noite, próximo à escadaria da prefeitura municipal. Viu apenas algumas sirenes, um mundo de curiosos e vidros estilhaçados pelo chão. Ao se aproximar da cena, como mais um enxerido, foi bruscamente acusado com os dizeres: "foi ele, foi ele".
Sem qualquer reação, o pedinte quieto e sujo, não entendia nada. Viu um carro grande e preto com vidros quebrados e portas arregaçadas. Indagado pelas autoridades, Reis não viu motivo para mentir e disse onde passou a noite.
Algemas nas mãos, alguns tapas na cabeça, e suas afirmações sem efeito algum diante dos policiais. O carro preto era de um vereador, alinhado e um dos principais personagens da cidade desonesta. O seguro saldava sem qualquer burocracia os danos causados no carro, mas encontrar o criminoso que cometeu tal ato era muito difícil. Fácil era apontar, sem receio, como autor do crime um pedinte, sem família, amigos, casa e sequer um advogado.
Rotulado como vagabundo Reis entrou no camburão da PM, lágrimas de tamanha injustiça caiam sobre seu rosto. Os populares, sem ter o que fazer, aplaudiam a ação rápida da polícia, enquanto o vereador os cumprimentava pelo "apoio" recebido e lembrando, é claro, as eleições municipais que vinham por aí.
Espremido no "chiqueirinho" da viatura, Reis estava quieto, pensativo e inconformado com tal absurdo.
Lembrou do seu passado na casa de menores infratores e pensou na injustiça cometida mais uma vez com a sua vida. Chegou a uma conclusão, sólida e real sobre o país em que vive:
"Já me conformei, eu vivo no Brasil. Um país repleto de repressões e desigualdades, onde os fracos (grande maioria) são os injustiçados e condenados a pegar pelo maior crime já cometido: terem nascido".
O vereador? Virou prefeito. E o Reis? Vai apodrecer na cadeia.
Por Kallil Dib