Era a hora mais esperada do meu dia, a pausa para um café. Que momento! Posso garantir a você, ninguém é infeliz tomando um bom cafezinho passado na hora, para nós professores, então, é hora sagrada. Esse era o meu momento, só meu, olhos fechados, apreciando e saboreando meus 10 longos minutos de paz. De repente:
- Oi, professora.
Fingi que não era comigo. Melhor não abrir os olhos, o excesso de trabalho pode estar me pregando uma peça. Vou ficar aqui, feito estátua, olhos cerrados, não respira.
- Profe, você pode "mim" ajudar?
Confesso que, nessa hora, eu queria ser um personagem da saga Harry Potter, só para aparatar em outra dimensão. Continuar fingindo que não estava ali? Não iria funcionar, o melhor era ajudar mesmo, afinal, depois do "mim ajudar" aquela alminha precisava de mim urgentemente.
Encarei o problema. Nem abri os olhos direito e a enxurrada de palavras, sem sentido, começaram.
- Professora, eu preciso de ajuda. Vo faze um jornal pra escola e minha primeira notícia vai ser sobre a nova língua portuguesa - a linguagem neutra. Você mim ajuda?
Minha vontade era de falar NÃO, sair dali e fingir não ter ouvido tanta besteira - para não dizer um palavrão. Mas, algo naquele diálogo despertou minha atenção, muito mais do que o "mim" antes do verbo - "linguagem neutra". Reverberava no meu ouvido.
Comecei tentando lembrar o abençoado que o correto é "me ajudar", que MIM não conjuga verbo, que ele não era um índio da época dos jesuítas, sim, porque hoje, até os índios falam corretamente. Foi quando percebi que falávamos dialetos diferentes.
- Tendi, mas a senhora pode ajudar mim fazer?
Tive tempo de dar apenas três piscadelas...
- Profe, eu quero mostra pros alunes a importância da linguagem neutra pra acolhe a todes amigues aqui na escola, mais não sei como explica essa nova mudança no português, mim ajuda?
Meu cérebro ainda estava corrigindo as gafes verbais daquela frase toda, quando a próxima surgiu:
- Meu título vai ser - BEM-VINDES TODES!
Antes de perder um pouco do bom senso que ainda me restava, tentei explicar que a linguagem neutra NÃO existe na nossa língua e é pouco provável de existir, já que, para ser implementada, deve-se mexer em toda a estrutura linguística aqui e em Portugal, afinal somos línguas irmãs e todas as alterações feitas aqui devem estar em comum acordo com lá, o tal do acordo ortográfico. Logo, não vão mudar uma língua inteira, centenária, por conta de uma aberração verbal que mais exclui do que agrega. Sim, EXCLUI. Aliás, antes de querer obrigar uma sociedade toda a mudar sua forma de falar e escrever é preciso APRENDER o próprio idioma corretamente, o que está longe disso acontecer.
Como exemplo, citei a palavra SOCIEDADE que é um substantivo feminino terminado em e; já motorista, que também é um substantivo feminino, termina em A, para mudar o gênero basta acrescentar o artigo - o, assim, você terá o motorista - masculino, NÃO EXISTE motoriste, porque não existe nenhum artigo neutro. Portanto, não é colocando E, x ou @, no final das palavras, que incluirá alguém ao idioma.
E, assim, foi nosso pequeno tempo de conversa. Tentei mostrar o que fazer com os surdos, já que, em libras não há a possibilidade de acréscimo inventado de vogais "neutras" - "Ai, profe, não tem surdo na escola.". E os cegos? "Cego nem lê, profe.". Falta de conhecimento em braile é comum também. Autistas? "Ah, autistas já lê, neh profe, vai ficar até mais fácil pra eles?!". E lá estava eu, piscando três vezes de novo...
Percebi que não conseguiria convencer aquela "santa alma" a mudar sua matéria, falar de algo mais útil para o corpo discente daquele colégio, mostrar a importância do nosso idioma, do falar e escrever acertadamente. O jeito era apelar a boa e velha língua OFICIAL portuguesa. Propus um desafio. Se em um mês ele aperfeiçoasse seu português, falasse sem erros o pronome mim nas frases, usasse o R no final dos verbos no infinitivo, demonstrasse domínio do MAS ou MAIS, aprendesse libras para mostrar a importância dessa língua gestual-visual para incluir os surdos a sociedade, colocasse um pictograma para autistas, entre outras correções linguísticas por menores, eu mesma escreveria a matéria para ele.
Nem uma palavra. Por semanas, não vi nem sinal daquela alminha. Passado um tempo, estou eu de novo com meu café:
- Oi, Profe. Vim mostrar minha matéria.
Ao abrir os olhos, pude ler: TODES PELO MIM.
Não tive tempo de dar nem três piscadelas.
Nos vemos na próxima semana, até lá.
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Michelle Orsi - Redação
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