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O corredor de um hospital: a saúde pública no Brasil

Kallil Dib

  • 10/02/12
  • 10:00
  • Atualizado há 674 semanas

*Por Kallil Dib

E as dores o consumiam, eram fortes, latejantes. Suas mãos suavam, os olhos vermelhos lacrimejavam, a vertigem era consequência.

Passado pelo médico, um tanto atencioso, foi pedido exames às pressas, internação junto ao Hospital Regional, que nada, ficou no Pronto Socorro mesmo. Colocado na maca, aguardou. A aflição continuava, remédios eram preparados, e ele dormia. Não tanto a ponto de ver fatos e ouvir histórias que um dia ilustrariam um artigo.

Já era tarde da noite, o silêncio, por incrível que pareça, pairava dentre o hospital, por enquanto. Dez minutos mais tarde chega a mãe desesperada com a filha no colo, talvez apenas uma virose, gripe comum, um tombo da cama, ou não. Três quem sabe quatro da manhã, e a demora para atendê-la foi a mesma como numa tarde, um feriado. Não ousei em perguntar o porquê, enfim.

Os gritos de desespero da criança ao ver a temida injeção acordavam toda a vizinhança doente. Era de se entender as três profissionais que se mobilizaram para segurá-la, enquanto a mãe, com lágrimas nos olhos, acariciava sua filha com palavras de conforto.

E assim a noite passou, a menina pequena foi embora dali e a atenção se voltou para outros inúmeros casos que atravessavam o corredor estreito do PS.

De repente gritos exagerados de um homem viciado em qualquer coisa. Ele chegou de ambulância, com os ânimos exaltados, e um tanto diferente. Cabelos longos, sapatos de mulher, saia curta, batom na boca.

Homossexual, o moço bem dotado de corpo, com seus tantos quase dois metros, deitou-se pelos corredores daquele lugar. Não era possível saber o que ele tinha, mas certamente algo o fazia delirar, além do preconceito corriqueiro da sociedade, que fazia dele um sujeito qualquer, por ali também.

Uma injeção bem preparada o fez cair em sono profundo, tão profundo que ficou no corredor mesmo, deitado no colchão arrumado de algum lugar. A madrugada se foi, e o rapaz moreno estendido no chão era vítima de risadas e admiração dos indivíduos que andavam nos corredores, durante o dia. Permaneceu ali a ponto de suas partes íntimas ficarem a amostra por alguns minutos. E crianças chegavam, passavam, olhavam, e pais... Santa da enfermeira com seu lençol branco que cobriu o jovem rapaz.

Acordou depois de umas 24 horas de sono, e calmo, foi-se embora, enfrentando olhares de revolta e desgosto, para um dia, quem sabe, voltar e ficar ali, sendo 'admirado' novamente, como um animal num circo, ou como um homossexual em um hospital.

E enquanto isso, no quarto do banheiro, os internados eram avaliados corriqueiramente.

A mulher não desgrudava do marido que a 3 semanas morava no hospital, esperando uma vaga para internação, lá no tão sonhado regional. Esperou tanto que até de quarto mudou, não porque quis. Seu quadro piorou e foi levado à emergência, quase morreu sem sequer conseguir almejar um espaço digno para a internação. Deixou a mulher desesperada, gritando como viúva nos corredores, ligando para Deus e o mundo ajudá-la.

Aquele menino, que passou mal por uma dor de estômago, que vomitou até não ter mais nada para se sustentar, tomou um soro e ficou bem. Foi pedido um exame de sangue, e ele aguardou o resultado, que ficou pronto rápido: no mínimo umas 6 horas.

Ainda a garota que chegou passando mal, tomou uma injeção na veia, foi embora e 20 minutos mais tarde estava lá de volta. O senhor que nos corredores estava quase morrendo, com uma bolsa de sangue e uma de leite em seu corpo, talvez seus últimos instantes com os olhos abertos, seriam vistos por quem quer que seja.

No quarto ao lado, as dores do garoto ainda o consumiam, eram fortes, latejantes. Suas mãos suavam, os olhos vermelhos lacrimejavam, a vertigem era consequência. Sem exageros, tomou no mínimo 7 ou 8 remédios diferentes, nenhum custeado pelo governo. Gastou o que já não tinha, em farmácias. Como os caros medicamentos não adiantaram a solução então era aguardar a mesma vaga que aquele homem esperava a 3 semanas. E com fortes dores, uma semana se foi sem qualquer prognóstico confiável. O jeito era dormir para se esquecer da aflição.

E depois de 7 dias, o cansaço tomou conta, as dores pioravam apenas pelo fato de ele estar convivendo com tudo aquilo. Enfim um Clínico Geral o avaliou, deu o veredicto com base na sua experiência,e ele foi embora, continuar seu tratamento a domicílio. Já que se estivesse esperando ainda, estaria lá até hoje.

E enquanto tudo isso acontecia, certos profissionais jogavam conversa fora, iam ao supermercado ou na academia. Funcionários contavam piadas e cochilavam escondidos com os colchões das macas.

O pior é saber que nesse país nada é apenas uma crônica, que tudo se camufla em meio de fraudes. O pior é saber que enquanto as pessoas dependentes da saúde pública estão morrendo, tem gente preocupado com verbas para o carnaval, é saber que o dinheiro destinado à saúde dos carentes é desviado, e fazendas, e carros de luxo e viagens para qualquer destino, são esses doentes que pagam.

O pior é saber que nada disso vai se resolver, e que nesse corredor um dia eu vou voltar.

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