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Davi, o garoto de 10 anos

Kallil Dib

  • 26/09/11
  • 19:00
  • Atualizado há 694 semanas

Por Kalill Dib

Como qualquer outra rotina a quinta-feira começou, e foi nessa tarde monótona que o impossível aconteceu.

Os carros barulhentos passando, o sorveteiro assoviando na esquina de cima, e a aula já estava para começar. Trazidos por seus pais os alunos chegavam à escola com as mochilas de homem-aranha penduradas nos ombros e um sorriso estampado de orelha a orelha.

As brincadeiras já eram vistas no portão. Carrinhos de plásticos de um lado, pega-pega do outro, e pôsters de Justin Bieber encantando os olhos das garotas. Nada de anormal para a nova geração. Nada costumeiro para os antigos sensatos.

O sinal de entrada toca, os familiares se despedem e a criançada ruma para mais um dia cansativo e venturoso de aprendizado e brincadeiras. Na fila de entrada dois amigos conversam como gente grande. Um fala de futebol, como se entendesse, e o outro conta um segredo.

Parecido com os desenhos, onde o caçador tenta eliminar a sua presa, aquele inocente de 10 anos de idade, diz ao parceiro: "tenho uma arma e hoje vou matar a professora", abrindo um sorriso de euforia inexplicável. O amigo, boquiaberto e meio sem saber, sorri amarelo e não diz nada. Depois de um papo meio sem corpo inteiro, cada um segue para o seu canto de estudos.

Na sala da 4ª série, no fundo do corredor, um pouco mais de 20 crianças entre 10 e 11 anos, prestavam atenção na aula de ciências. Quando o relógio marcou 16h, as professoras se revezaram na troca de matérias. Quem assumia o posto era a tia Rose, que prontamente já apagava o quadro e começava a sua lição.

Na troca de aula, o menino simpático, quieto e estudioso, vai até o banheiro com sua mochila de super-herói. Dela saca o revólver calibre 38, pegado de seu pai - um guarda civil municipal- e se dirige até a classe. Num momento de angústia e sei lá mais o que, dispara contra a prof. Rose. Em seguida, desnorteado, o garoto de 10 anos, sai da sala e num ato digno de inconformismo efetua um disparo contra sua cabeça, morrendo poucos minutos depois. Esse era Davi.

A partir daí os noticiários, programas de fofoca, sites reconhecidos e sem credibilidade, começam a especular diante do fato ocorrido. As culpas para o trágico acontecimento recaem sobre qualquer pessoa que estava envolvida diretamente com a criança. Desde seus pais, até seu amigo da fila de entrada. Mas a culpa é de quem? De ninguém que já foi citado!

Olhando de fora é fácil culpar alguém. Já me deparei com notícias meio absurdas que justificavam a atitude do menino. Um site diz que Davi sofria o tal do Bullying. No canal de televisão a culpa é de seu pai, pois deixava seu instrumento de trabalho exposto lá em cima do armário. E mais, já ouvi dizer que Davi não gostava da professora, e por ela ser tão disciplinadora foi a escolhida para sofrer o ataque.

Como mais um espectador, apreciador da informação e contestador por natureza, eu procuro com os meus pensamentos um tanto disciplinares colocar uma justificativa um pouco mais convincente para essa história.

Não sei se sou antigo demais por achar que uma criança de 10 anos não deve saber o que é e para que serve uma arma de fogo. Acredito que essa é a fase das brincadeiras de bola e de peão. Mas o que esperar quando os desenhos animados, responsáveis por entreter e ajudar no desenvolvimento da criança, tem os seus principais personagens munidos com uma arma de fogo? E se não a usam para eliminar no mínimo intimidam seus inimigos.

Os psicólogos e pedagogos citam a "terceira infância" como determinante na vida de um ser humano. Esse é o terceiro período de vida do indivíduo, acontece aproximadamente entre 6 a 12 anos. É neste período que as crianças precisam receber cuidados especiais, pois é uma fase escolar e sociável onde o indivíduo começa a interagir em seu meio e adquirir novas descobertas e conhecimentos.

Essa "terceira infância" está cada vez mais escassa. Programas de televisão inapropriados, com linguagens inóspitas e personagens impensáveis, acabam se tornando o espelho dos pequenos, que sem qualquer restrição não se intimidam a seguirem a risca toda essa doutrina transmitida a eles. Pois estão na fase de conhecer, se adequar e de conviver com insultos e incoerências, assim ainda não conseguem distinguir o melhor para sua rotina. E é por isso que ter uma família afetuosa e estruturada é essencial para o desenvolvimento do indivíduo.

O caso de Davi não fugiu desse conceito. Aos 10 anos o garoto já conhecia um mundo diferente. Sabia o que era uma arma de fogo, onde ela estava guardada e mais do que isso, tinha a consciência do que podia fazer com aquele revólver.

Davi, como outros milhares de crianças não tinha acesso a meios que o fizesse conhecer um diferente universo infantil. Cresceu instruído por toda essa comunicação que não respeita a infância, adolescência e a maturidade. Apenas a burguesia, aqueles que conseguem ter acesso a canais de televisão pagos e outros meios divergentes.

Davi morreu sem saber que a vida era outra, e que aos 10 anos conviveu com tudo o que a de errado. A culpa? É da sociedade e desse mundo em que, infelizmente, Davi nasceu.

Por Kallil Dib

www.kallil.com

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