*Por Kallil Dib
Conheci, há alguns dias, um morador de rua, meio suspeito, enrolado, sujo, um pouco gago e com fome do mundo. Era negro, sem estudos, mas sabia ler, meio diferente: dez minutos por linha. Não sei quantos anos ele tem, mas vou arriscar, alguns tantos 30, com cara de 40. Barba serrada, chinelo de dedo, sorriso fedido e lindo.
Enganam-se fulanos que pensam ser perca de tempo uma prosa dessas, seja por cinco minutos, aqueles mesmos cinco minutos que você passa reclamando que no seu almoço têm arroz, feijão e bife, todo dia. Para os leigos, vale a experiência de uma conversa com um morador de rua: é literário, em seu sentido amplo.
A irrealidade em que vivem, as contraposições da sociedade hipócrita, as incoerências de uma vida movida a cachaça e loucuras, ao inconsequente e injustiça.
O assunto de nossa conversa foi nada mais que alguns trocados dados, e um obrigado, com um sorriso fino, costumeiro de morador de rua. De cinco minutos, nos estendemos a tantos...
E o pedinte:
... Disseram-me: 'não desista de seus sonhos', quando eu ainda era criança. Nos tempos de enxurradas em dias de tempestades de verão, naqueles moinhos de vento que balançavam as janelas enferrujadas, tempo em que os pais eram pais.
E assim as lacunas de uma vida se abriram: vida de orgulho sem pestanejar, por dias ruins e mal acabados. Eu sou o detentor de toda essa mentira.
Favela da carroça, maio de 1981, cidade da ilusão. Enquanto o Papa sofre um atentado, os moradores da favelinha sofrem vários, todos os dias. Mas ninguém vê: os jornais não noticiam, nem em uma linha, os telejornais não abrem seu espaço para tanta baboseira, o rádio... Não pode.
Não me esqueço, lembro como se essa flor ainda fosse vermelha... (lágrimas)
...E assim vim parar nas ruas, agora estou aqui, te pedindo um dinheiro, para um salgado e uma cachacinha né! Ninguém é de ferro sinhô... (risos)
E então, passou um carro preto, daqueles grandes, com vidros embaçados e um tanto de luxúria.
E ele com um pão, metade na mão outra na boca, sorriu de canto e disse: "prefiro meu chinelo gastado, minha roupa rasgada, minha vida dolorida, do que ter tudo para mostrar e não ter nada para sentir".
Eu? Fui embora viver, pensando duas vezes antes de criticar o meu alento.