*Nelson Pedro-Silva é Prof. Dr. do Curso de Psicologia da Unesp. Contato: [email protected]
Freud já afirmava que sem pacto, não se teria seres civilizados. Antes disso, Hobbes, entre outros, ao dissertar sobre o Estado absoluto, disse que se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.
Traduzindo. Edgard de Assis Carvalho, ao comentar as posições políticas do psicanalista Hélio Pelegrino, assim resumiu o seu pensamento acerca do mundo contemporâneo: um mundo sem amor, desoxigenante, terminal, incapaz de garantir a socialidade mínima. Nesse cenário dilacerador é que explodem a violência generalizada, a impotência social, o descalabro institucional, a reprodução ampliada da cultura do narcisismo que, de um lado, aposta na desestruturação da sociabilidade e, de outro, investe no curto-circuito da autopreservação e da autoconservação desmesurada.
Segundo o psicanalista Jurandir Freire Costa e o historiador Cristopher Lasch, essa mentalidade é produto da cultura da violência. Ela, ao apontar a todo o instante a impotência e a impossibilidade de mudança do sombrio quadro social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do EU, levando ao estabelecimento de modelos interacionais pautados na superficialidade e brevidade. Nesse sentido, o filósofo Bauman os define como líquidos, e o epistemólogo e psicólogo Jean Piaget, heterônomos; portanto à mercê do clima cultural geral. Em outros termos, o sujeito dá a impressão de que está se relacionando, mas, na verdade, sequer está escutando o outro.
Em resumo, o estabelecimento de um pacto é essencial para se superar qualquer problema e em qualquer relação, seja de amizade, filial, fraternal, seja amorosa-sexual.
Por quê? Conforme o filósofo e educador Mario Sergio Cortella, é por meio do pacto que se cria uma comunidade, isto é, um conjunto de pessoas juntas com objetivos partilhados, mecanismos de autoprevensão e estrutura de proteção recíproca.
A reciprocidade relaciona-se à lógica da ação. Segundo Piaget é esta lógica - aliada à noção de reversibilidade - que torna possível a coordenação de pontos de vista, pois, ao estimular os sujeitos a se colocarem no lugar de outrem, como no dos ambulantes e estes, por sua vez, no dos destruidores de suas "barracas" - permite a ambos se compreenderem.
Nesse sentido, a apresentação de condutas recíprocas obriga o sujeito, a todo instante, a colocar-se no seu próprio lugar e no dos outros. Isto não significa agir acriticamente ou seguir uma ordem dada por alguém julgado uma autoridade. O sentido é o de coordenação de pontos de vista, isto é, os membros envolvidos, antes de executar determinada ação, devem levar em conta a opinião alheia, a ponto de, no fim, ser capaz de coordenar a sua visão com a de outros, não denotando, dessa forma, a prevalência ou a aceitação do apresentado. Assim, os seus partícipes só devem agir de certa maneira, depois de eles terem se colocado no lugar dos demais e refletido: se estes sujeitos agissem assim em relação à minha pessoa, seria válido para todos, inclusive para ele próprio? Em caso afirmativo, significa que o sujeito pautou-se pela reciprocidade.
Outro aspecto: busca-se fazer as pessoas se pautarem em suas condutas por princípios. Afinal, mais prestígio gozam os princípios, pois, comparáveis à bússola, informam a direção a ser seguida, diferentemente das regras, já que elas dizem aonde se deve ir.
Outra decorrência desse exercício de reciprocidade e reversibilidade é a possibilidade de compreensão de que a dignidade humana é um princípio em si mesmo e que deve ser cultivado. Isso leva os sujeitos a pautar suas condutas pela concretização da máxima: tratar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.
Soma-se a isso, o desenvolvimento do espírito comunitário. Com a reciprocidade, o grupo passa a ser compreendido como comunidade. Em decorrência, além de partilhar objetivos comuns, há a própria reciprocidade e a rede de proteção (os membros do grupo buscam se proteger, se ajudar). O fim é o de dar ou o de receber apoio, bem como o de construir e avaliar estratégias conjuntamente.
Consequentemente, as punições por reciprocidade objetivam, em última análise, levar o infrator a compreender a tolice cometida, ou seja, o desenvolvimento. Pois bem, as pessoas que destruíram as "barracas" dos ambulantes da Vila Kenedy deveriam sofrer ação semelhante, como serem suspensas e deixarem de receber os seus provimentos enquanto permanecerem nessa condição. É evidente que se essa ordem foi dada por um superior, a punição deve recair sobre ele. Pode parecer que estou a defender a "Lei do Talião". É um engano, pois o objetivo principal aqui é o de fazer o sujeito compreender a tolice cometida e não lhe causar dor como um fim em si mesmo.
Quem sabe assim, ações derivadas do processo de ocupação federal/militar do Rio de Janeiro, sobremaneira na citada Vila, deixariam de ocorrer.
Em tempo 1: todos os dados indicam que os trabalhadores ambulantes tentaram regularizar suas situações por diversas vezes e por vários anos, tendo malogrado no seu intento. O motivo alegado por eles referia-se à morosidade e à ação de "forças ocultas" nas subprefeituras da capital fluminense.
Em tempo 2: não se trata de os agentes do Estado faltarem com a solidariedade. Mesmo que agissem pautados por esse valor e não destruíssem as "barracas", a solidariedade é um valor por demais pequeno e interesseiro para pautar as nossas condutas.
Em tempo 3: as evidências, até o momento, apontam que o interventor do estado do Rio de Janeiro, foi incapaz de ter esse pacto traduzido em ações efetivas.
Sublinho esse aspecto porque, sem esse tipo de contrato entre os moradores do Rio e as forças de ocupação, assim como com as já existentes de segurança (civil, militar e carcerária), o fenômeno da violência no Rio não será minimamente equacionado.
Diferentemente do que muitos pensam, acredito que uma guerra produz benefícios. No caso do Rio, trata-se da vitória da sua população e da União contra grupos criminosos e paramilitares. Somado a isso, a beligerância pode nos levar aos seguintes aspectos:
- compreender o modo de funcionamento de cidadãos que, praticamente privados dos serviços estatais, mostram-se leais aos membros do crime organizado e às milícias;
- possibilitar o entendimento da cegueira branca (alienação) que tomou conta da sociedade, a ponto de se pedir a volta da Ditadura Militar;
- entender o fato de a morte ter se tornado espetáculo, a ponto de as pessoas se fotografarem ao lado de cadáveres quando estão a passeio no Rio;
- constatar o quanto somos lobos de nós mesmos;
- analisar a cultura produzida nos guetos, produto do ar mórbido de um povo ferido na sua capacidade de autodeterminação, a maneira de Picasso em relação à Espanha ditatorial de Franco;
- compreender a sociedade do espetáculo que Debord problematizou;
- concluir que, atualmente, tudo que é sólido desmancha no ar, apontado por Marx & Engels e problematizado por Bauman sobre a condição de liquidez;
- separar a imprensa de máquinas de propaganda;
- tomar consciência acerca da transformação dos cidadãos de morros e comunidades em vermes ou animais que precisam ser castrados porque são compreendidos como responsáveis por esse status quo;
- lutar contra o microfascismo diário que, por meio de novas tecnologias, tem transformado o relativismo cultural e o politicamente correto em instrumentos de produção do silêncio, da vigilância, do controle e de promoção de ações judiciárias;
- enfim, acordarmo-nos desse estado que nos transformou em zumbis e elevou ao grau máximo o ditado popular do não tem mais jeito.
O problema é que o nosso principal documento, que traduz um pacto de convivência na sociedade brasileira, é cotidianamente desrespeitado ou inobservado. Refiro-me à Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 1988 e que, tudo indica, já se tornou letra morta.
Camarada, companheira, cidadã Marielle Franco, descanse em paz.