'Drenagem cerebral': o uso exagerado do celular suga nossa capacidade cognitiva, diz novo estudo; entenda
Os brasileiros passam metade do dia usando o aparelho, país está em segundo lugar no ranking mundial dos que mais utilizam smartphones
O Globo
- 04/05/23
- 08:00
- Atualizado há 77 semanas
Há exatos 50 anos, completados no mês de abril, o primeiro celular do mundo, o DynaTAC 8000x, da Motorola, era lançado no mundo. No entanto, foi apenas cerca de 30 anos mais tarde, no início do século XXI, que os aparelhos começaram a se popularizar e a se conectar à internet - o início da era do smartphone. Menos de duas décadas depois, já existem mais celulares do que habitantes no Brasil, segundo o Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGVcia).
E não é apenas a quantidade de aparelhos que aumentou rapidamente, mas o número de horas por dia dedicadas a eles. O Brasil é o segundo país que passa mais tempo do dia no uso de telas, atrás apenas da África do Sul: são cerca de 9 horas e 32 minutos, quatro apenas nas redes sociais, o que representa 58,2% do tempo médio em que um brasileiro está acordado, segundo dados do Digital 2023:Global Overview Report e do aplicativo Sleep Cycle, analisados pela Eletronics Hub.
Ao passo que mais e mais horas são gastas com o uso de celulares, e que as novas gerações provavelmente utilizarão os aparelhos desde o nascimento até a morte, especialistas chamam atenção para a importância de falarmos sobre um conceito chave na vida moderna: educação digital. Afinal, esse uso recorrente do dispositivo não é isento de riscos e provoca até mesmo alterações no funcionamento cerebral.
— Quando você está ali, são inúmeras informações bombardeando seu cérebro. Você basicamente fica dando uma tarefa para ele de compreender aquela informação, independente do que seja, o que gera uma sobrecarga. E muitas vezes não há conexão entre as informações para levar o raciocínio a algum lugar, então são esforços superficiais, que não se concretizam em algo — diz o professor de neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Li Li Min, pesquisador do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Cepid - Brainn).
Os especialistas alertam principalmente para efeitos na cognição, na atenção, na memória, mas também para os impactos na autoestima e no desenvolvimento de quadros de dependência - muito associados aos contextos de exposição e de acompanhar as vidas alheias nas plataformas sociais.
Estudos avaliam impacto no cérebro
Um dos trabalhos mais conhecidos sobre o tema, publicado no periódico Journal of the Association for Consumer Research, concebeu o termo "drenagem cerebral" ao avaliar o impacto da simples presença de um smartphone no mesmo local que o indivíduo na cognição.
Os pesquisadores queriam testar a hipótese de que o fato de o aparelho estar no local já faz com que as pessoas direcionem recursos cognitivos para ele, como pensando nas tarefas que precisam realizar ou nas notificações que podem estar perdendo. Com isso, menos recursos estariam disponíveis para outras atividades, que teriam o desempenho prejudicado.
O estudo foi dividido em duas partes, em que uma os participantes precisavam se lembrar de palavras e, na outra, resolver problemas matemáticos. Em ambos, os voluntários foram divididos em grupos em que cada um estava com o celular em um local: na mesa, no bolso ou na sala ao lado. Quanto mais longe o telefone estava, melhor foi o resultado da tarefa.
"Os resultados dos dois experimentos indicam que mesmo quando as pessoas conseguem manter a atenção sustentada - como ao evitar a tentação de verificar seus telefones - a mera presença desses dispositivos reduz a capacidade cognitiva disponível (...) (Ou seja) mesmo quando você não está pensando conscientemente em seu telefone, o processo de não pensar em seu telefone requer alguns recursos cognitivos", escreveram os autores no estudo.
Mas o impacto não é somente nos esforços que destinamos pensando nos telefones. Um dos grandes aspectos da cognição é a capacidade de se concentrar, algo que tem sido cada vez menor graças aos estímulos rápidos e em grande quantidade que os smartphones oferecem, explica a psiquiatra, mestre e doutora em dependências tecnológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Julia Khoury.
— Temos uma diminuição da capacidade de se concentrar em longos períodos porque os estímulos do celular são muito rápidos e intensos, e eles fazem o cérebro liberar dopamina, que é o hormônio do prazer. Toda vez que recebemos isso dessa forma gera uma necessidade de mais dopamina, o cérebro fica ávido por isso. Por isso checamos o celular a todo o momento. Só que essa dopamina também é liberada no córtex pré- frontal, que é a região que controla nossos impulsos, que faz com que consigamos nos concentrar a longo prazo, que basicamente nos diferencia dos animais irracionais — diz a especialista.
Um outro ponto importante da cognição afetado pelos dispositivos é a memória, ainda que de uma maneira diferente. Um estudo feito por pesquisadores da University College London, no Reino Unido, e publicado na revista científica Journal of Experimental Psychology: General, mostrou que os dispositivos digitais podem ajudar a guardar informações importantes e, com isso, liberar a memória das pessoas para recordar outras coisas mais banais.
Embora isso tenha um efeito superficialmente positivo, uma vez que o indivíduo consegue guardar um maior volume de informações, Min aponta que leva as pessoas a exercitarem cada vez menos a própria memória. Com isso, tornam-se cada vez mais dependentes do aparelho e com uma capacidade cognitiva de armazenar as informações por conta própria menor.
— A tecnologia veio para ajudar, mas essa ajuda tem um preço. Você sabe o número de telefone de todos os membros da sua família? Muitas pessoas não sabem nem o próprio celular. Você acaba não exercitando essa questão de memorização, porque delega ao celular o armazenamento das informações. Hoje o celular é uma extensão da nossa memória. Isso é bom no dia a dia, mas você acaba deixando de exercitar essa função. E nós aprendemos na medida da prática. Quanto mais nós praticamos, mais consolidamos nossa capacidade para aquela determinada habilidade. E a memória também é assim. Então quanto mais eu exercito ela, melhor ela é. E quanto menos, pior é também — diz o neurocientista.
Além disso, esse efeito também pode estar fazendo com que as pessoas tenham uma maior "preguiça mental", tornando-se mais propensas a buscarem e confiarem em informações fornecidas pelos dispositivos do que pela sua própria mente. É o que identificou um estudo publicado no periódico Computers in Human Behavior, conduzido por pesquisadores da Universidade de Waterloo, no Canadá.
"Eles (usuários de smartphones) podem procurar (no telefone) informações que na realidade conhecem ou que poderiam aprender facilmente, mas não estão dispostos a fazer um esforço para realmente pensar sobre isso", disse Gordon Pennycook, co-autor principal do trabalho, em comunicado na época.
Há ainda evidências de que a leitura feita majoritariamente por meio de dispositivos digitais esteja causando um declínio na capacidade de compreensão. Em um estudo publicado na revista científica Scientific Reports, cientistas da Universidade de Showa, no Japão, compararam o hábito por meio de telas ou do papel.
"Descobrimos que, em comparação com a leitura em papel, a leitura em um smartphone provoca menos suspiros, promove hiperatividade cerebral no córtex pré-frontal e resulta em compreensão reduzida", escreveram os autores.
Redes sociais, ansiedade e dependência
A psicóloga, doutora em Saúde Mental e coordenadora do Laboratório Delete - Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Anna Lucia Spear King, chama atenção para outra consequência dos celulares: o uso excessivo das redes sociais.
Isso porque, devido à alta exposição e comparação com um retrato perfeito das vidas alheias, essa interação constante pode criar quadros de transtornos psicológicos, especialmente entre aqueles que já são mais propensos, o que também afeta o funcionamento do cérebro.
— Geralmente os jovens são mais propensos porque é uma geração criada já com o uso das tecnologias e seus pais muitas vezes não tem conhecimento de educação digital para dar os limites. Especialmente aqueles que se impactam mais com os comentários, que são inseguros, com baixa autoestima, necessidade de autodeterminação. Eles ficam mais vulneráveis às redes, por conta da necessidade de estar inserido em algum contexto, de receber curtidas — diz.
Além dos transtornos ligados à autoestima, Min acrescenta que as redes podem exacerbar quadros de ansiedade por acostumarem o cérebro a um ritmo diferente daquele do mundo real.
— Você perde a noção do tempo, fica ali uma hora, duas horas, e parece que é muito menos. Você começa a perder essa dimensão de espaço e tempo, entra num ritmo do virtual. Mas nós vivemos no mundo real, e essa diferença deixa quem já é ansioso mais ansioso. Porque o celular tenta impor uma velocidade de processamento para o seu cérebro que não é natural — explica.
Esses sintomas negativos são ainda mais preocupantes nos quadros em que há de fato uma dependência do indivíduo com o celular, diagnóstico chamado de nomofobia. Anna Lucia, que atende dependentes de forma gratuita no Instituto Delete, esclarece quando a relação da pessoa com o aparelho acende um alerta.
— Muitos se acham dependentes porque usam muito, mas isso não configura um vício, e sim um mau uso das redes. A diferença é que esse uso para trabalhar, para se conectar com amigos, um uso saudável é normal, mesmo que o excesso não seja recomendado. Mas quando falamos sobre dependência patológica, que é a nomofobia, ela começa a levar a impactos na vida pessoal, profissional. acadêmica. E a nomofobia muitas vezes está ligada a um transtorno mental primário, que pode ser uma ansiedade, uma depressão, que potencializa esse uso— explica.
Em relação ao tratamento de casos em que a relação com o celular não está saudável, ainda que não configure um vício, a psicóloga orienta que é possível estabelecer limites. Porém, que eles devem fazer sentido para a pessoa, se não podem ser ineficientes.
— Cada método vai funcionar para uma pessoa. Para mim, eu não uso tecnologias na hora da alimentação, uma hora antes de dormir. Evito trabalhar fora do horário para não usar mais telas. Quando estou com meus amigos. Esses limites em tarefas cotidianas podem levar a um viver melhor, a usufruir mais dos benefícios sem os prejuízos. Educação digital é algo muito importante, nós ainda estamos muito atrasados em relação a isso — conta a especialista.