Professor de História da UNESP de Assis avalia Reforma do Ensino Médio
O professor responde questões polêmicas sobre a MP do Ensino Médio
A Medida Provisória (MP) apresentada pelo Governo Federal no dia 22 de setembro é muito polêmica. Diversos pais, estudantes e profissionais da Educação questionam a mudança que visa estender a grade curricular do Ensino Médio e incluir algumas disciplinas profissionalizantes, como direcionar o aluno ao que pretende estudar.
A equipe do AssisCity consultou o historiador e professor do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis, Ronaldo Cardoso Alves, que atua no curso de História na área de Metodologias do Ensino de História.
Ronaldo respondeu a algumas questões acerca da possível Reforma do Ensino Médio, sobre o papel das Ciências Humanas no aprendizado, além da importante figura do professor.
Veja a entrevista.
AssisCity - Qual sua opinião sobre a possível Reforma do Ensino Médio?
Ronaldo Cardoso Alves - Todos são sabedores de que urge uma mudança no Ensino Médio. Das fases da educação básica brasileira, esta tem sido a que menos teve o olhar dos sucessivos governos, pois somente em 2009 foi aprovada uma emenda constitucional que torna obrigatória e gratuita a educação, por parte do Estado, a todos brasileiros que tenham entre 4 e 17 anos de idade, portanto, incluindo o Ensino Médio. Segundo a Emenda Constitucional 59 de 11/11/2009, o Estado deveria, progressivamente, dar conta desta demanda até o presente ano, 2016, nos termos do PNE. Portanto, houve tempo para discussão em torno de uma reforma, porém ela não se apresentou no formato de Projeto de Lei pelo governo Dilma e, tampouco por Temer. Infelizmente está sendo feita no formato de MP por Temer, a meu ver sem a devida e necessária discussão de assunto tão importante com a sociedade.
AssisCity - Qual deve ser a verdadeira Reforma do Ensino Médio?
Alves - Voltando ao Ensino Médio, vários países com educação de melhor qualidade que a brasileira, oferecem um período comum de disciplinas a serem estudadas e, num segundo momento, os estudantes escolhem qual a área do conhecimento em que querem se concentrar - Humanas, Exatas e Biológicas - tendo maior carga horária na área escolhida. Opção que aponta para uma formação posterior, seja na Universidade ou mesmo numa terceira fase em estudos técnicos de nível médio (dessas mesmas áreas do conhecimento) para aqueles que não pretendem ingressar na universidade.
Este não é o problema. O problema é a forma como as coisas são encaminhadas no Brasil com ações que não coadunam com nossa realidade.
Por exemplo, aqui já se observa uma diferença na Medida Provisória enviada pelo MEC, pois as escolas não serão obrigadas a oferecer todos os cursos nas diferentes áreas do conhecimento que constam no documento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e formação técnica e profissional). Assim, um estudante após cursar a parte comum em sua escola, e que desejar aprofundar-se na área das "Ciências da Natureza" numa escola que só ofereça os cursos das áreas das "Ciências Humanas" e "formação técnica e profissional", por exemplo, será obrigado a deslocar-se de escola. Quem arcará com os custos de deslocamento e permanência de um estudante pobre que estudará integralmente longe de sua casa?
Outro exemplo. Entendo que o aumento de carga horária, com vistas a tornar todas as escolas (de Ensino Médio, mas também de Ensino Fundamental) com cursos de período integral seja um bom caminho, o qual tem sido percorrido por vários países com Educação escolar exitosa, porém tais escolas devem ter espaços apropriados para diferentes atividades cognitivas, culturais, esportivas e sociais. Ora, a MP do MEC contraria isso quando propõe que o ensino de Artes e de Educação Física sejam obrigatórios somente até o Ensino Fundamental, bem como quando a nova Secretária Executiva do MEC não garante os estudos de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio, pois tais disciplinas estão na área de Humanas e, portanto, podem compor um estudo multidisciplinar. Nessa perspectiva, um professor de História poderia lecionar um conteúdo que agrega-se estudos filosóficos e sociológicos, por exemplo. A pergunta é: o que aconteceria com os cursos de licenciatura em Filosofia e Sociologia? Teriam demanda com essa perspectiva de trabalho?
Outro problema: quais estudos e atividades serão realizadas em período integral se ações artísticas e esportivas são consideradas desnecessárias? Seria uma rica oportunidade de acontecer exatamente o oposto: oficinas de teatro, música, poesia deveriam ser incentivadas. Atividades esportivas de diferentes tipos deveriam ser praticadas e fomentadas. Certamente as escolas particulares continuarão a ter essas disciplinas, pois não prescindirão de sua importância na formação do estudante. Assim, o estudante da escola pública será ainda menos "competitivo" no mercado de trabalho.
AssisCity - A educação brasileira deve ser reformulada em todas as seriações?
Alves - O grande desafio da educação brasileira é qualificar a educação básica, dando condições efetivas de permanência de seus estudantes, acabando com sua desistência no meio do processo de estudos. Para isso, faz-se necessário ampliar o investimento em Educação e, certamente, melhorar a gestão desses recursos. Há políticas reformistas para todas as séries em curso no Brasil. É o caso da BNCC (Base Nacional Curricular Comum), que vem sendo discutida desde o governo Dilma, e contado com muitas polêmicas em diferentes áreas do conhecimento. Duas versões da BNCC foram apresentadas no governo Dilma, por diferentes ministros na gestão do MEC. Foram amplamente criticadas. Com Temer o debate, que estava efervescente, arrefeceu. Veio a MP do Ensino Médio que alude em vários momentos à BNCC. Mas, qual o conteúdo dessa terceira versão da BNCC? Ora, baixar uma MP, com linhas mestras de sua organização, mas sem saber-se, efetivamente, o que constará no currículo, parece-me incongruente. Mais. A BNCC foi discutida em termos de conteúdos disciplinares em todas as seriações, inclusive nas três do Ensino Médio. Como dialogará com a MP do MEC se ela comporta uma base comum e outra, com aprofundamento multidisciplinar e respectiva carga horária maior, em diferentes eixos? Algum grupo, agora, está estudando isso no MEC? Se está, como ficará todo o trabalho feito, ao longo de todo este período, na BNCC? Ainda não está claro.
AssisCity - Qual a importância das disciplinas de Ciências Humanas para a formação do aluno?
Alves - As disciplinas de Ciências Humanas são fundamentais para os estudantes, pois possibilitam o exercício de reflexão constante a respeito das questões de cidadania numa sociedade democrática. Raciocinar em torno do processo histórico, do pensamento humano, da vida em sociedade, dos sistemas geopolíticos, das relações entre espaço e tempo, da vanguarda artística que antecipa e propõe a discussão de diferentes questões humanas, são fundamentais para a constituição saudável de um ambiente democrático que possibilite, a todos os indivíduos e grupos, a (con)vivência cidadã, a relação dialógica com a alteridade, entre outras ações fundamentais. Prescindir desse conteúdo que aponta para a discussão da estrutura complexa da sociedade brasileira e de seu lugar na relação de poderes do mundo contemporâneo, certamente produzirá pessoas que facilmente poderão reproduzir ideias alheias. Ora, numa sociedade em que todos são bombardeados diariamente por enorme quantidade de informações, as Ciências Humanas são fundamentais para produzir reflexão a respeito das diferentes ideias que circulam na sociedade, bem como construir interesse político, no sentido etimológico do termo, ou seja, preocupação com as questões estruturais da "polis" (cidade no grego).
É claro que a educação básica e, principalmente, o Ensino Médio, devem também contribuir para o encaminhamento dos estudantes ao mercado de trabalho, seja por meio de profissões geradas pelo ensino universitário, seja no ensino técnico de nível médio. A MP do EM, no entanto, parece revelar uma preocupação estrutural com a satisfação das demandas do mercado, sobretudo com a geração de mão de obra qualificada para as empresas de diferentes áreas de atuação no Brasil, deixando a formação cultural, política, social e esportiva, em segundo plano. Ora, ambos objetivos são pertinentes para a construção saudável da democracia em seus diferentes vieses - político, socioeconômico e social. Pensar em reformas, sem a devida discussão com a sociedade, partindo de uma matriz que pense em satisfazer somente o lado mercadológico, porém não dando igualdade de condições entre os estudantes do ensino público e privado, parece querer perenizar e aprofundar a desigualdade social no país. Nessa lógica, como os estudantes de Ensino Médio de escolas públicas poderão ser "competitivos" se boa parte de conteúdos de diferentes áreas do saber lhes será retirado enquanto o mesmo não ocorrerá entre os estudantes das ditas escolas privadas de "excelência" (dessas melhores classificadas no ENEM, por exemplo). É óbvio que tal situação ocorre hoje e algo precisa ser feito, mas a atual proposta do MP, caso seja aprovada sem mudanças significativas, poderá reiterar e aprofundar a distância entre um pequeníssimo grupo com grande poder socioeconômico e político e o outro, enorme, que luta muito para conseguir formar-se na educação básica. A classe média, por sua vez, permanecerá lutando pela manutenção de seu trabalho para sustentar os altos custos privados de educação e saúde, compreendendo-se mais próximo do primeiro grupo, quando, na realidade, não percebe que a cada dia essa distância cresce mais, aproximando-a, estruturalmente, do segundo grupo, muitas vezes alvo de seu preconceito.
AssisCity - Como os professores, pais e alunos podem expressar ao Governo o que pensam sobre a educação?
Alves - Uma sociedade democrática pressupõe o envolvimento de todos nas questões públicas. Entretanto, problemas estruturais na educação brasileira entre outras questões, impediram e impedem a construção de uma mentalidade politizada, com cidadãos preocupados com as questões públicas e com a democrática discussão com a alteridade, com o diferente. Veja que o cruzamento da crise política que se aprofunda desde 2013, com uma sociedade historicamente deseducada politicamente e o crescente acesso às redes sociais, produziu discursos absolutamente intolerantes de grupos antagônicos "ideologicamente" que vem sendo reproduzidos irrefletidamente. Embora possa se pensar no aumento da preocupação das pessoas com as questões políticas do país, a deseducação política produzida também por uma escola de péssima qualidade gerou a intolerância, bem como a incapacidade de lidar com o diferente. Se a escola muitas vezes é o único elo entre a sociedade e a comunidade à medida que muitas políticas públicas chegam à população por meio dela (distribuição de materiais escolares, uniformes, programas de saúde, de segurança pública, de alimentação, etc), por que pais, professores e alunos não se sentem parte de sua constituição, enquanto cidadãos? Por que não são ouvidos? As ocupações, por parte dos alunos, de escolas de SP e de outros estados são exemplo dessa incapacidade de ouvir do Estado. Nesse sentido, a MP do EM é mais um exemplo desse processo, pois como medida provisória desprezou, mais uma vez, a opinião desses grupos que compõem a escola e a comunidade na qual ela se encontra inserida.
AssisCity - Qual o papel do professor no processo educacional?
Alves - Em meu entender qualquer Reforma na Educação teria de passar, inicialmente, pelo aumento estrutural dos salários dos professores, pelas condições de trabalho e, obviamente, pela melhoria de sua formação inicial e continuada. Sem uma política de Estado que considere o professor como a linha mestra da Educação, reconstruindo sua importância profissional, social e seu empoderamento, não haverá reforma, seja em qual fase da educação básica for, que consiga dar conta da complexidade da educação brasileira. Sem bom salário não se atrai, estruturalmente, os melhores profissionais para a docência.
Bom professor, professor respeitado, boa escola. Parece básico, mas historicamente o básico tem sido deixado de lado na educação brasileira, sobretudo quando o Estado se viu obrigado, a partir da Constituição de 1988, de tornar a educação pública, efetivamente pública. Em outras palavras, quando o Estado foi obrigado, constitucionalmente, a garantir a educação de todas as crianças brasileiras. Ao ser obrigado a possibilitar que todas as crianças concluíssem o ensino fundamental, mais professores tiveram de ser contratados, escolas tiveram de ser abertas, políticas de permanência estudantil criadas, faculdades privadas de licenciatura de formação duvidosa proliferaram. Entretanto, o salário dos professores e sua importância social na mesma proporção, mas no sentido inverso, diminuíram. Verifica-se, portanto, que o Estado brasileiro atual pretende retornar a uma condição anterior à Constituição de 1988, pois na contramão de outros países, quer limitar o investimento em saúde e educação, quando, na realidade, deveria aumentar o investimento e melhorar a gestão nessas áreas, priorizando o aumento de salários, a estruturação da carreira, a qualificação da formação inicial e continuada e, principalmente, o empoderamento e o respeito social dos professores.
AssisCity - O senhor apóia o ensinamento por meio do "Notório saber"?
Alves - Alguns entendem que a MP quando trata dos profissionais com "notório saber", pretende apenas direcioná-los às escolas que terão os cursos de formação profissional, atraindo, por exemplo, profissionais de diferentes áreas (da engenharia, da economia, da administração, etc) ou mesmo de instituições profissionalizantes como SENAI, SENAC e SESI, para doar de sua experiência para os estudantes do EM. Entretanto, quando nos deparamos com a realidade de nossas escolas, verificamos a falta de professores de diferentes áreas como, por exemplo, de Física, Química e, até mesmo, de Matemática. Ora, numa escola que tenha "professores" sem licenciatura, com "notório saber", lecionando na área técnica, que carecer de professores das disciplinas que citei, certamente a direção preferirá oferecer tais aulas a estes "professores com notório saber" que lá estarão.
Para mim, a ideia de abrir esse precedente visa reduzir custos de formação de professores e dar conta da falta de docentes de algumas áreas, sem o investimento adequado. É a abertura de uma porta para a "institucionalização do bico". Pensar nessa ideia é referendar ainda mais a proletarização do professor, o desprezo à sua formação e à sua importância na formação de nossas crianças e adolescentes. Existem escolas como as ETECs de São Paulo, por exemplo, que contratam seus profissionais docentes em áreas técnicas, por meio de concurso público, exigindo formação e atribuindo-lhe aulas de sua área, portanto, sem a conotação de "notório saber". Não há porque valorizar um profissional com "notório saber" em detrimento da valorização do professor que estuda vários anos, faz estágios em escolas, pesquisa, etc, para obter a condição de lecionar. Lamentável.